Clepsydra, de Camillo Pessanha, vista por Pedro Barreiros
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ex-libris

MACAU, CAMILLO PESSANHA E A MINHA PINTURA

Macau foi sempre para mim um estado de espírito...

Saí de Macau muito novo com os meus pais e o meu irmão mais velho, também lá nascido A minha mãe estava muito grávida e o navio a vapor estafado que nos trouxe demorou tanto tempo a chegar a Lisboa que até deu para aportarmos com mais um irmão nascido em Port-Said alguns dias antes do fim da viagem.

Uma vez chegados e instalados, eu e o meu irmão Manuel combinámos - o outro ainda não falava - esquecermos a Língua Chinesa, a primeira que aprendemos, para falar daí para diante só o Português. Em Macau a nossa casa era ao lado do casarão do Avô e a maioria das nossas refeições eram na cozinha grande onde a A-SIM e a A-CHOI nos mimavam com os petiscos chineses que faziam e que sorvíamos das nossas tigelas com a ajuda dos nossos “pauzinhos” de prata; com elas aprendemos uma língua muito mais fácil para nós, composta de monossílabos e sem as “nuances” gramaticais da língua que nos era imposta pela nossa filiação e nacionalidade.

A nossa combinação pegou e pouco tempo depois o cantonense só ficava na nossa memória para algumas iguarias culinárias e para insultar subtilmente alguns colegas de escola - inimigos de momento - que pela diferença de tamanho achávamos imprudente imprecar com a língua de Camões ou, melhor nesta circunstância, na língua de Bocage...

Mas Macau ficou a ser sempre a nossa ternura da infância...

A nossa memória do conforto “recheado” da casa do Avô...

A segurança da cama da Tia Amália que usávamos como refúgio dos pesadelos em que nos vinha apoquentar a Bruxa da “Branca de Neve e os Sete Anões” de Walt Disney - a nossa primeira grande experiência cinematográfica...

Macau ficou a ser sempre para nós o Sabor máximo - os doces e os salgados, os rebuçados de côco, os bom-bons, as frutas de conserva chinesas (o CHAN-PEI-MUI, o WAMUI, o LAM...), os bolos da hora do lanche... O Rossio foi logo por nós baptizado “MACAU das Pombinhas” e o arroz doce para ser BOM tinha de ser feito com leite condensado como o fazia a Avó Augusta em Macau... (Durante o tempo de guerra em que nasci e vivi em Macau, penso que só devia haver leite condensado e leite em pó).

Exigíamos sempre arroz branco a todas as refeições, qualquer que fosse a ementa e, ao pequeno almoço de Inverno era com tigela e pauzinhos que engolíamos a fava rica que a “mulher” vinha a nossa casa de Lisboa vender “pelas traseiras”...

Em nossa casa, o que havia, se comprava ou que aparecia, era sempre comparado com Macau que saía sempre vitorioso nos mais pequenos detalhes de cheiro, de gosto, de ver, de tocar de perceber...

Muito antes que qualquer outro poeta, Camillo Pessanha entrou em mim e a sua poesia foi sempre para mim tida como uma “coisa de Macau” - do meu Macau preservado na memória, como o gosto da jagra, dos chintoi ou da cantilena que me cantavam para adormecer:

“- DOM, DOMDOM, DOMDOM - sinhô Capitan! Espada na cinta! - Rota na Man!”...

Na Escola Primária olhava para o meu professor careca e gordo que agredia com cachimbadas na testa os meus colegas das carteiras da primeira fila e imaginava a silhueta franzina de fato branco de brin engomado com reflexos de anil do professor que a minha mãe me contava das suas aulas de história com o cabelo negro e liso, a barba hirsuta e os olhos num estrabismo de infinito. Via-o com os seus dedos esguios e nodosos, unhas encaramelizadas de nicotina de enormes charutos a enrolar bolinhas de secreções secas que tirava do nariz e que piparoteava aos alunos com um sorriso travesso da criança escondida atrás da sua figura seca e austera.

Nas noites de Inverno, com as pernas cobertas pelo tapete de Arraiolos que a minha mãe ia bordando, ouvia-a falar de Macau, das coisas boas de Macau, incomparáveis em gosto e qualidade a tudo o que se pudesse comprar em Lisboa. Nunca me deixou esquecer os gostos, os cheiros, as cores e os sons da minha terra macaense e a figura de Camillo Pessanha vinha sempre nessas ternas memórias de Macau.

Em casa vivia a Tia Amália, irmã da minha mãe - a ‘TAI-KU’ como lhe chamávamos. Tinha sido a primeira menina de Macau que tinha vindo estudar para Lisboa. O austero José Vicente Jorge - meu Avô - não concordava de vez com a sua vinda, achava que não era de deixar uma sua filha atravessar o Mundo para vir para Lisboa estudar. Foi Camillo Pessanha, seu amigo e grande frequentador da sua casa que o conseguiu convencer a deixá-la partir estabelecendo-lhe uma mesada e escrevendo uma carta à sua irmã maçónica D. Ana de Castro Osório a recomendar a “gentil menina” e a pedir-lhe que a recebesse em sua casa. E assim a Tia Amália veio para Lisboa estudar Medicina, sob a égide do Poeta!

Mais tarde descobri - também pela minha Mãe - a Clepsydra numa primeira edição que ela tinha assinado em quase todas as páginas penso que por fascinada por quase todos os poemas.

Foi por ela que ouvi as suas primeiras rimas pois não conseguia ainda ler o livro numa ortografia tão diferente da que eu soletrava nos meus livros oficiais da primeira e da segunda classes.

Com eles consegui distinguir as qualidades das coisas - não era o jardim mas a sua Hora (suave nos fins de Tarde); não era o Jasmim-Flor, mas o seu perfume; não era a Lua nem sequer a sua Luz mas a Onda que a propagava e fazia que cada partícula de nós mesmos viesse a vibrar em uníssono com Ela...

... O objecto Flauta era apenas um canudo de madeira ou de bambú com alguns buracos - não era isso que importava, o que chamava era o Som que vinha desse objecto, Só e Incessante, como o Ai de uma Viúva que chama o seu amante perdido para sempre e nos entra dentro na Solidão Tranquila de novos Momentos de Poesia...

... A cadência das Arcadas do Violoncelo, a música das sílabas trocadas foi-me penetrando e marcando o ritmo do meu pulso e dos meus passos tal como as Imagens que me passavam pela Retina com os olhos fechados com medo de os abrir e deparar com a destruição cadenciada das coisas materiais do meu Lar com os Lençóis rasgados, a Mesa partida e o Vinho entornado...

... Comprendi a necessidade da Falta de Harmonia para a poder vir a desejar; senti a Solidão que leva a procurar um Ser semelhante que beba connosco do mesmo Copo e o desespero de o não encontrar ou de o não conservar e que nos faz poisar os Bordões de Viajantes e prosseguir sozinhos a nossa viagem...

... As Rosas Bravas iam-me aquecendo os olhos cada vez que olhava as tristes Paisagens de Inverno... e, quando olhava para as Colinas Verdes da Arrábida ou de Sintra, via a Sílfide caminhar para mim com a sua carne de Camélia...

Pintar Camillo Pessanha foi um acto directo de transpor para a tela toda a beleza que recebi dos seus poemas durante a minha juventude, nas recordações mais ternas que definiram o estado de espírito que Macau foi sempre para mim...

Lisboa, 25 de Fevereiro de 1990
PEDRO BARREIROS


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